Mitos existem para nos guiar pelo exemplo, para nos mostrar que os limites do ser humano podem e devem ser extrapolados em nome de um bem maior. Geralmente, essa é a única recompensa dos heróis, aqueles que nunca quiseram uma recompensa, para início de conversa: ser imortalizado em lendas e se juntar ao grande inconsciente coletivo de geração em geração. E todo herói começa sem ter noção do desafio que o aguarda, ele apenas atende o chamado e vai. Quando se dá conta, chegou lá e deixou um rastro épico de triunfo.
A Odisseia para o Oeste é uma narrativa milenar da cultura chinesa com a qual tive meu primeiro contato destilada através das lentes de um jogo eletrônico. Com certeza, um processo que nem de longe passaria pela mente dos criadores originais da história ou daqueles que dela participaram, se é que realmente existiriam. É uma história de companheirismo, de sacrifícios e esperança em uma terra onde os fracos vivem sob a sombra do terror dos fortes.
Para adaptar essa fábula clássica para uma mídia contemporânea, os mestres da Ninja Theory tiveram a ajuda de Alex Garland, roteirista de cinema responsável por sucessos como "Extermínio", "Sunshine - Alerta Solar", "Dredd', "Ex-Machina". Todos grandes filmes que não tem medo de mergulhar na condição humana e na sua relação com a obsessão e a tecnologia.
Para completar o time de heróis dos bastidores, o inigualável Andy Serkis se juntou a essa jornada, dando vida a Monkey, o protagonista de Enslaved. Seus movimentos graciosos, animalescos mas precisos são resultado da fina arte de um homem que nasceu para fazer captura de movimentos, um ator que transforma o ato de caminhar em uma expressão, a curvatura da espinha em personalidade.
As estrelas se alinharam com perfeição em Enslaved - Odyssey to the West e o jogo consegue fazer jus ao mito, ao escritor, ao ator e aos desenvolvedores.
Controlamos Monkey, um lobo solitário que vem se virando muito bem em uma Terra pós-apocalíptica assombrada por uma guerra perdida contra as máquinas. Até que seu destino se cruza com os escravizadores da Pyramid, que vagam pelas ruínas recolhendo sobreviventes e os convertendo em servos sem vontade. Durante a fuga alucinante que abre o jogo e dita a tônica e a adrenalina dessa jornada, ele se torna um servo de Trip, uma jovem e engenhosa sobrevivente que deseja retornar a sua vila natal. Escravizado, Monkey irá atender às vontades dela, mas dessa aliança improvável irá florescer uma relação cativante.
A interação entre os dois personagens é perfeita, mesmo não alternando entre eles. Embora controlemos Monkey e somente Monkey, precisamos dela para sobreviver e vice-versa e essas mecânicas combinadas com os diálogos vão construindo pontes entre duas visões tão opostas da realidade. Ele, pragmático. Ela, sonhadora. Juntos são mais do que dois e tem tudo para triunfar entre os escombros de uma Nova York abandonada e além.
Alternando entre puzzles e sequências de combate, Enslaved sabe dosar seu ritmo. O desafio está na medida certa. As lutas oferecem diferentes possibilidades de ataque e defesa e apresentam uma fluidez que lembra a série Arkham, mas possui personalidade própria. A animação de movimentos de Andy Serkis é espetacular e faz a diferença, com direito a finalizações em câmera lenta que dão a devida dimensão para a brutalidade contida de Monkey.
Aqui, não há correrias, mas muitas pausas para se apreciar o ambiente magistralmente (des)construído pela Ninja Theory. Mesmo após tantos clichês pós-apocalípticos despejados em nós em décadas de cultura pop, esse mundo ainda deslumbra. Não há explicações claras sobre o que levou a Civilização a esse estágio, mas apenas pistas. E o jogo incentiva a exploração, com itens coletáveis que podem ser transformados em evoluções de personagem. Eu, que geralmente ignoro colecionáveis, fiquei de olhos bem abertos para todos, talvez como uma forma de prolongar minha permanência nesse mundo ou para tornar os combates mais fáceis.
Esse deslumbre é fruto também de gráficos impecáveis que envelheceram muito bem desde o lançamento do jogo em 2010. Ao contrário de minhas expectativas, Enslaved tampouco se restringe ao cenário urbano de Nova York e outras paisagens serão encontradas nessa jornada para o Oeste.
A dinâmica do duo se torna um trio no terço final do jogo, com a entrada de um terceiro e hilário protagonista. Não que o título fosse sério ou dramático anteriormente, Monkey não hesita em ser sarcástico, mas a entrada de Pigsy é muito bem-vinda, proporcionando cenas impagáveis. O personagem tem uma aventura solo separada, que vem escondida nos Extras da Premium Edition e irá ganhar uma análise também.
A batalha final extrapola todos os limites do nosso herói e, de certa forma, completa o círculo iniciado na cena de abertura. Novamente, estamos do lado de fora de uma estrutura perigosa, lutando por nossas vidas. Quando Monkey toma a decisão aparentemente insana para derrotar o inimigo final, sabemos de antemão que irá funcionar, porque é algo que ele vinha fazendo desde o início do jogo. A Ninja Theory fez um bom serviço ao plantar essa semente de confiança em nossos cérebros e quando Monkey vai, uma parte pequena de nós grita que não vai dar certo, mas outra muita maior grita de exultação. É uma sensação boa que não tinha desde a apoteose de Portal 2, aquele "será que?" que salva o dia.
Lamentavelmente, Enslaved derrapa no epílogo. Não é nada que manche uma jornada tão majestosa. Como diz a sabedoria milenar, o importante não é a chegada, mas os amigos que fazemos no caminho.