David Cage, o controverso criador por trás da Quantic Dream, conta que Beyond: Two Souls começou com fotos de Ellen Page. Após participar de um funeral, o diretor do jogo começou a arquitetar uma história sobre vida e morte em sua mente e sobre a força da superação. Para ilustrar a personagem que estava imaginando, fez uma pesquisa na internet e a primeira imagem que chamou sua atenção foi uma da atriz norte-americana com a cabeça raspada. Nascia ali Jodie Holmes.
Quanto mais Cage escrevia cenas e pontos importantes do que seria possivelmente seu melhor jogo, novas pesquisas por referências visuais levavam a Ellen Page. As palavras chaves que ele digitava sempre retornavam Ellen Page. Um ano depois de estudos e trabalho, o diretor tinha um roteiro com 2 mil páginas e um escritório com paredes repletas de fotos da atriz. Dos oito anos até a idade adulta, Jodie Holmes era Ellen Page.
Em entrevista, Cage revelou o obstáculo que surgiu em seu caminho: "continuei escrevendo e colocando mais imagens de Ellen no meu roteiro. Depois de um ano escrevendo, eu tinha fotos de Ellen em todo o lugar. Comecei a perceber que isso poderia ser um problema. Porque percebi que teria que pedir à Ellen para participar do jogo".
O homem que havia trabalhado com David Bowie no pioneiro Omikron: Nomad Soul, sentiu o medo se alastrar diante da possibilidade de realmente encontrar Ellen Page na vida real. Em sua cabeça, ela era Jodie Holmes e nenhuma outra atriz poderia ser capaz de preencher aquele papel. O sucesso de Beyond: Two Souls dependia da sua musa aceitar a tarefa que aquele exótico diretor francês de um jogo iria lhe propor. Para todos os fins, ela era parte inseparável do projeto. "Se ela tivesse recusado, eu estaria com problemas. Porque não havia plano B".
Cage pediu a ajuda de seu diretor de elenco. Enquanto Heavy Rain foi praticamente realizado sem a presença de grandes nomes e produzido depois que os atores tinham sido selecionados, para Beyond: Two Souls o processo já havia sido iniciado. Cage precisava de Ellen Page. Ou, pelo menos, era sua firme convicção. Um encontro foi arranjado entre agentes e a atriz compareceu para uma conversa.
O impacto inicial e o frio na barriga ficaram na memória do diretor: "era tão estranho vê-la caminhando para a nossa mesa. Quando nos conhecemos pela primeira vez, eu realmente vi Jodie Holmes, não Ellen Page. Lembro-me de pensar enquanto ela caminhava para a nossa mesa, espero que, quando ela começar a falar, ela ainda seja Jodie Holmes, que ela não desapareça e se torne alguém completamente diferente".
Para sorte do diretor e de todos os jogadores que tiveram a oportunidade de contemplar sua atuação no jogo, Ellen Page aceitou o papel.
Imaginação Pura
Ao contrário do que se possa imaginar, trabalhar para um jogo eletrônico é mais do que apenas vestir uma roupa de captura de movimentos e recitar algumas linhas. No caso de Page, o roteiro era imenso. Não apenas Beyond Two: Souls é muito maior que um longa-metragem convencional como também a atriz se viu obrigada a gravar cada alternativa de fala, cada caminho que poderia ser seguido pelo jogador. Tudo isso com 88 pontos luminosos grudados em seu rosto, vestindo uma roupa apertada e trabalhando diante de um cenário vazio, dentro de um quadrado laranja no chão e com 70 câmeras registrando cada gesto corporal.
Em entrevista na época para o The Hollywood Reporter, ela explicou a sensação: "você não está trabalhando em sets ou indo para uma locação. É como ter seis anos de idade. Você tem que imaginar tudo. Você tem que se deixar levar completamente".
Em outra entrevista, Ellen Page explorou o lado desafiador do trabalho. Não bastava apenas entrar no personagem, mas ser aquela Jodie Holmes multifacetada que o jogador controla. Em determinado momento, ela pode dar uma resposta X e uma ação Y, para logo em seguida, gravar a mesma cena com outra postura, outra abordagem do jogador. Em suas palavras: "as vezes, a cena pode ser incrivelmente complexa ou intensa emocionalmente, então você não apenas está tentando estar nesse espaço e tem uma quantidade incrível de diálogo para memorizar, mas não é coeso, no sentido em que digo algo a Willem [Dafoe] e ele diz algo para mim e então eu digo algo para ele, e então dou uma parada, depois dou a outra resposta, depois dou uma parada e dou a outra resposta".
Ela descreveu o processo como a atuação plena, sem precisar se preocupar com câmeras ou luzes e onde todo seu corpo estava envolvido, não apenas o rosto. Com medo de que o resultado pudesse influenciar sua performance, Ellen Page evitou ao máximo se ver dentro do jogo. Ela temia que contemplar a si mesma em formato 3D pudesse de alguma forma quebrar o encanto, uma espécie de retrato de Dorian Gray moderno. Ela temia que Jodie Holmes não correspondesse à forma como ela se imaginava.
Entretanto, foi inevitável. Em dado momento, Cage insistiu para que ela visse uma das cenas finalizadas, com o personagem virtual, o cenário, a música, tudo junto em seu estado completo. Sua reação foi a melhor possível ao finalmente conhecer a Jodie Holmes de Beyond: Two Souls. "Eu estava completamente deslumbrada. Acho que fiquei com medo de vê-la, porque como vou agir quando me vejo animada? Eu fiquei tão emocionada. Eu não podia acreditar no que estava olhando".
Para Cage, não há mistério no processo: "é realmente sobre clonagem de uma certa maneira, mas acima de tudo, recriar a emoção que o ator deu no palco, em 3D no jogo". Por destino ou confluência criativa, musa e personagem se complementaram, um inverso do jogo, uma alma desta vez ocupando dois corpos. Cage estava certo: Ellen Page era Jodie Holmes.