Na medida em que os jogos eletrônicos se tornaram uma atividade cada vez mais inserida no cotidiano das pessoas, era mais ou menos natural que esse espaço virtual também se tornasse para muitos um espaço de convivência. Principalmente para aqueles que não podem ou não se sentem à vontade para realizar uma convivência no espaço físico tradicional. É dessa porosidade que surgiu o marcador (ir)realidade no blog.
E poucas obras sintetizam tão bem e de forma tão comovente esse cenário quanto "A Extraordinária Vida de Ibelin". O documentário disponível na Netflix retrata as duas vidas do jovem Mats Steen, uma vítima da Distrofia Muscular de Duchenne, uma condição genética devastadora irreversível. A doença poderia ter confinado a mente aguda de Steen dentro de um corpo progressivamente atrofiado. Steen escolheu uma rota de escape em World of Warcraft.
No MMORPG, Mats Steen ressurgiu como Ibelin, um jogador misterioso que realizava uma corrida pelas imediações sempre que se conectava no servidor. Pelo simples prazer da corrida, um cooper matinal jamais realizado em ruas e calçadas concretas. Em Azeroth, Steen se transformava.
O documentário começa devagar, retratando a infância e a adolescência de Mats Steen. A obra é possível graças aos abundantes registros em vídeo de uma família que fez questão de guardar seu cotidiano na película de uma filmadora ou em arquivos digitais. Não há quase nada nesses primeiros momentos que pudessem preparar o espectador (ou sua família) para a segunda vida de Steen. Ainda assim, a janela está ali presente, uma pista sutil do que virá a seguir.
E essa parte da narrativa se encerra com a morte de Steen. Não é um spoiler, é somente a triste realidade da doença que o ceifou: a expectativa de vida é extremamente baixa, a qualidade de vida é questionável. Porém, é nessa parte da narrativa também que o documentário mostra a que veio: havia algo mais, havia algo oculto e havia algo sublime.
Somos convidados a conhecer então Ibelin, o alter-ego de Steen. Mais do que uma válvula de escape, mais do que uma oportunidade de "correr" por aí, Ibelin é o caminho por onde a pessoa real consegue exercer seu potencial dentro do virtual. Um conciliador, um amigo para todas as horas, uma voz racional em sua guilda. Até mesmo um amante, um galanteador. Ibelin era o indivíduo de carne, osso e sentimentos que Steen estava condenado a não ser.
Por um lado, todos os habitantes daquele mundo são entidades de pixels, seus nomes são falsos, suas aparências são falsas, seu universo é um grande faz-de-conta. Por outro lado, atrás de cada avatar havia um ser humano, com seus próprios desafios, seus próprios anseios, seus próprios defeitos. Ibelin interagia com os personagens. Mats Steen falava com as pessoas. O jogo era sua interface para deixar uma marca no mundo. Esse é o termo certo, essa é a tradução mais precisa do título do documentário: a vida marcante de Ibelin.
Essa marca se manifestou fisicamente em seu funeral. A Guilda estava lá. Não assassinos, paladinos, magos ou sacerdotes, mas pessoas que se deslocaram através de fronteiras para se despedir de um amigo.
A produção de "A Extraordinária Vida de Ibelin" foi iniciada sem o aval da Blizzard. O diretor Benjamin Ree leu a respeito de Mats Steen na internet e sentiu ali uma história para ser contada a qualquer custo. O corte final do documentário foi exibido para o alto escalão da Blizzard, para obter o licenciamento necessário. Ao final da reunião, os executivos estavam aos prantos e garantiram a autorização. Hoje, uma réplica exata da lápide de Steen pode ser encontrada dentro de World of Warcraft, na Floresta de Elwynn.