(originalmente publicado no Gamerview)
Se você faltou ou já esqueceu suas aulas de Literatura Brasileira, Lima Barreto foi um dos maiores autores do início do século passado e precursor do Realismo, um estilo de época que se caracterizava em mostrar as mazelas da sociedade e do espírito humano sem máscaras, como uma forma de denúncia. De ascendência negra, o autor foi o escolhido pela equipe de desenvolvedores da Game e Arte, todos negros, para ser a fonte de inspiração para esse jogo, lançado no Dia da Consciência Negra.
Apesar da homenagem, a questão racial não é o ponto central do título, assim como não foi na vida do autor, e explora justamente um de seus talentos mais marcantes: a verve para a sátira, para encostar o dedo na ferida com bom-humor.
Aula de Literatura
A Nova Califórnia é uma adaptação do conto homônimo de sete páginas de Lima Barreto (disponível em domínio público, vale a leitura). Se você está pensando como é possível converter uma história tão curta em um jogo, vale lembrar que o mesmo conto também serviu de base para a novela global Fera Ferida (de 1993-1994), que atingiu a marca de 210 capítulos.
Ladrão de ossos.
No conto original, um estranho forasteiro se muda para a prosaica cidade de Tubiacanga e seu mistério a princípio agita o cotidiano dos moradores e instiga a curiosidade. Uma revelação no meio da trama serve de estopim para provocar uma reviravolta no povo local e mostrar que, por baixo da aparência de civilidade, reside uma ganância nociva no coração de todos e o caos se instaura. A mensagem de Lima Barreto, que se inspirou na febre do ouro que ocorria naquela época no estado norte-americano da Califórnia, é clara: o ser humano é capaz de cometer atrocidades em busca da riqueza fácil e somos todos iguais na lama, ricos e pobres, belos e feios, nobres e plebe.
O jogo homônimo não segue a mesma linha temporal do conto de Lima Barreto e pode confundir um pouco aqueles que não leram a história, mas a mensagem prevalece, com toques adicionais de senso de humor que não estavam presentes no texto de 1915. Não tem como não rir com o farmacêutico receitando supositórios para alguns clientes ou as intervenções do bêbado da cidade, aqui um personagem ainda mais significativo do que no original. Essa busca pelo humor não atrapalha o tom crítico da obra e está presente também na direção de arte, que captura em tom de charge a época e os exóticos habitantes de Tubiacanga.
Too much information!
Há inspiração também no cinema, que engatinhava no período abordado, seja no enquadramento, nos riscos de celuloide antigo ou nas falhas de exibição. Mantendo o espírito vivo de Lima Barreto, a trilha sonora é um espetáculo por si só, com composições de Chiquinha Gonzaga e outros autores da época, flertando com o emergente samba e trazendo uma brasilidade rara de se ver em jogos eletrônicos.
Aliás, é fácil visualizar esse jogo sendo utilizado como complemento em aulas de Literatura em colégios modernos, como um gancho para a discussão sobre o Realismo e o período histórico que o envolveu.
A fofoca é espalhada em praça pública.
Coisas Práticas
Se em termos de adaptação artística, A Nova Califórnia provavelmente deixaria Lima Barreto com um sorriso maroto no rosto, enquanto jogo, ou produto, por assim dizer, ele deixa a desejar.
Feito em RPG Maker, o jogo já precisa enfrentar de imediato o preconceito contra um dos motores gráficos mais odiados pelos jogadores e conhecido por sua simplicidade. E seus bugs... Por exemplo, não tente apertar F12 para capturar telas no Steam: o atalho universal para jogos na plataforma aqui comete a audácia de zerar o seu avanço e te devolver para a tela de menu. Em outro momento, um personagem que deveria seguir um padrão de patrulha trava em um ponto no meio do caminho e impede completamente o avanço do protagonista sem ser detectado.
Um dos melhores níveis do jogo, mas atrapalhado por um bug no finalzinho.
Ainda que a jogabilidade se encaixe como uma luva na proposta do enredo, há pouco para se fazer: algumas conversas aqui e ali com respostas bem claras e várias sequências de furtividade que pecam pela ausência de desafio. Apesar de empregar o RPG Maker, não há combates, evoluções de personagem ou inventários: somente algumas interações bem simples entre personagens e as fases passadas no cemitério, onde se deve quebrar tumbas e evitar ser flagrado por patrulhas.
Existe a possibilidade de jogar novamente todas as fases para se obter resultados melhores, mas é muito fácil conseguir o melhor resultado possível logo na primeira tentativa. Para os persistentes, o jogo tem surpresas guardadas no finalzinho, mas precisam ser desbloqueadas no site oficial.
Colocando na balança, seu preço base de R$25 chega a ser irônico em um título cujo tema principal é a ganância e que oferece ao jogador a possibilidade de sempre ser o mais ganancioso possível em suas ações. Para quem acredita que Arte não tem preço, e Arte faz parte do nome da desenvolvedora, é claro que A Nova Califórnia vale o que está sendo cobrado. Mas, para quem vive o cotidiano sofrido do proletariado que pouco mudou um século depois do texto de Lima Barreto, é um valor que pesa no bolso para uma experiência que dura 90 minutos.