Do alto de um edifício, eu contemplo a paisagem na Zona de Exclusão de Chernobyl. Estou em Pripyat, o coração da região mais inóspita conhecida pelo Homem. Eu não pertenço a este lugar, ninguém pertence a este lugar. Mas neste momento, com o céu límpido e o Sol brilhando no céu, observando a desolação do alto é quase possível esquecer os horrores que existem aqui. Esquecer que há 26 cadáveres neste mesmo prédio, que abri caminho até o topo com chumbo, coragem e sangue. Esquecer que há um número indeterminado de anomalias elétricas do meu lado que podem me fritar se der um passo na direção errada. Esquecer que logo ali na esquina há um Bloodsucker, uma das criaturas mais repulsivas que já vi, com tentáculos na mandíbula capazes de prender sua cabeça enquanto o monstro inteligente drena seu sangue. Quase posso esquecer que no horizonte há uma espécie de cipó parasita gigante conectando outros dois prédios e que uma estranha energia esverdeada percorre sua extensão.
Mas o Sol está brilhando. Há paz. É tão raro por aqui. Sem emissões, sem nuvens carregadas, sem aquela chuva gélida. Nesse precioso minuto, Pripyat é bela, poética. Um testamento arquitetônico da insanidade humana e do inexplicável.
Entretanto, tenho trabalho a fazer. Pego meu rifle Gauss e miro na cabeça do Bloodsucker. Ele não tem a mínima chance. Não há a menor necessidade disso. Eu apenas lembro de todas as vezes que cruzei com um de sua espécie, o pânico, a luta desesperada para atingir um mutante que pode ficar invisível. Eu penso nos tentáculos. Na forma inumana como eles dormem em seus covis. Aperto o gatilho. Ele explode.
Isso é S.T.A.L.K.E.R.: Call of Pripyat.
Visto de Turista
Você começa o jogo de forma suave. Ao contrário de outros jogos da franquia, aqui você é um militar devidamente equipado (a princípio) com responsabilidades, uma missão a cumprir e, diria eu, um total desprezo pela Zona.
Minha impressão inicial não foi tão positiva quanto à do S.T.A.L.K.E.R. original. O nível de dificuldade foi amenizado, a primeira área do jogo não é tão hostil como deveria ser. Ou será que não?
Felizmente a desenvolvedora GSC Game World entendeu que tensão pode até ser construída pela eminente ameaça de sofrer dano e ver sua barra de vida caindo, mas a melhor tensão, aquela que gruda na sua alma e não sai mais é aquela construída aos poucos, com contexto, enredo, inimigos bestiais, sons onipresentes de medo, trilha sonora perturbadora. Em Call of Pripyat você inevitavelmente vagará por longos minutos sem enfrentar nada, a não ser os seus próprios temores, apenas para ser confrontado, sem aviso prévio, com algo amedrontador. Nem toda luta é de vida ou morte, mas cada uma delas remove mais um tijolo da muralha da sua sanidade.
A Zona se infiltra na sua mente. É uma geografia quase viva, um cenário transformado em personagem constante, que desafia explicações, que emerge da jogabilidade dinâmica e imprevisível, mas também se faz presente nos eventos pré-programados, quase como se seus criadores conhecessem uma fórmula secreta de manter o jogador em permanente estado de alerta. O grotesco, o deformado, o incômodo, ditam as normas. E, mesmo ali, ainda há tempo para um violão, uma conversa, folhas verdejando.
Você entra na Zona como um visitante, alguém que irá apenas realizar uma missão de resgaste. Mas ela te enlaça, te arrasta e quando você se dá conta está participando da vida de seus habitantes, salvando vidas, tirando vidas, caçando monstros que podem ou não ser mutações, tentando decifrar o enigma desta esfinge. Você entra como turista, mas por muito pouco não fica para sempre.
Ecossistema do Medo
Andando de volta para uma das bases vejo um par de bandidos. Minha reação inicial é evitá-los. Já matei um número suficiente deles em outras ocasiões para que a facção talvez me veja como inimigo. Visualizo no binóculo e a interface me diz que são amigáveis.
Então me aproximo para negociar alguns itens que peguei de corpos caídos no chão. Estamos negociando quando um monstro gigantesco surge de lugar nenhum e derruba o bandido líder. Não há muito tempo para pensar. Atiro na besta, que não para de se mover um segundo e salta sobre o outro bandido. Ela erra o pulo ou o pobre coitado tem a sorte de se esquivar. Ele atira também, mas nada parece deter a fera. Com uma patada, o Chimera manda sua vítima longe e se volta para mim. Descarrego tudo que tenho. Ela cai.
Ouço o primeiro bandido, o infeliz com quem estava negociando, gemer no chão. Ainda está vivo. Posso recuperá-lo com um Kit de Cura. Ou dar o tiro de misericórdia e roubar suas coisas. Essa é a Zona. Ele é um Bandido. Não há ninguém por perto para ver. Pela lógica da mecânica fria, o melhor caminho é a execução. Eu curo ele. Negociamos e vou embora.
No caminho para base, passo por um tiroteio violento entre Stalkers e Bandidos. Atravesso o fogo cruzado sem interceder. Esta tarde não matarei bandidos.
Nada disso foi pré-programado. Entretanto, faz parte da rotina. A Zona se move, vive, cria seus pequenos dramas e tragédias ao meu redor como se meu personagem nada significasse. É um dos raros jogos em que você se sente menor que o mundo, que não faz a diferença e é apenas mais um lutando contra um universo que não é justo.
Saindo do Inferno
Na minha primeira tentativa de vencer o jogo, todos que estavam sob minha responsabilidade morreram. O resgate foi embora sem mim. Sozinho, cercado por inimigos e pelos corpos dos meus aliados, compreendi que aquele era o final mais adequado para a jornada. A Zona não é um lugar para vitoriosos, para finais felizes, para heroísmo. É um lugar de tristeza, de vidas desperdiçadas em troca da promessa da fortuna, atraídos pela Chamado de Pripyat. Eu morro, transpassado pela bala de um servo da Zona. Estou livre.
Entretanto, a GSC Game World não teve a ousadia de tornar canônica tal conclusão. Seria a consagração de um destino que se iniciou lá no começo com o fracasso da missão militar enviada para investigar a Zona.
Ao contrário de outros títulos, este entende que não é necessário um chefe final para desafiar o jogador. Não é um jogo sobre quantos mutantes especiais você matou ao longo caminho. Na verdade, estas aberrações radioativas até existem, mas são raras. A tensão não está na abundância, mas na incerteza de quando elas irão cruzar seu caminho, seja por azar ou por design.
O final é uma corrida desesperada pela salvação. Chega em um momento em que você já está saturado da Zona. Quando você percebe que os mistérios não terão resposta porque, assim como você, ninguém sabe de nada. A Zona é a Zona, o estranho acontece, a esperança morre. Ninguém deveria estar aqui. Você entrou para resgatar pessoas e sai com tanto medo quanto elas.
Tentei novamente a sequência final. Fui derrubado.
Tentei uma terceira vez. Com sangue no olho e determinado a tentar ser herói apenas mais uma vez. A dar meu dedo do meio para o inescrutável, cuspir na cara da Zona e gritar: "desta vez, não".
A cena final é linda. O jogo te oferece a possibilidade de continuar na Zona depois do término da história, para continuar explorando. Não consigo me imaginar dizendo "sim". Parto. É a maior sensação de alívio que já tive com um jogo.
Buscando inspiração em Fallout, Call of Pripyat pesa suas ações ao longo da trama e revela o que aconteceu com locais e pessoas que você tocou. Apesar de tudo que a Zona tentou para te convencer do contrário, você fez a diferença. Há fracassos, mas há acertos.
Para meu espanto, a narrativa revela que seu personagem retorna para a Zona no futuro, para residir permanentemente como um Adido de Segurança do Exército. Porém, não consigo me imaginar dizendo "não".
O Chamado é muito forte.