A Idade Média é um dos períodos mais assustadores da História humana. Por um lado, a urbanização já estava bastante avançada e sistemas de governo estavam solidificados a um ponto que indubitavelmente poderia ser considerado civilizado. Por outro lado, esses mesmos elementos se tornaram armadilhas sociais, na ausência de uma ética que os conduzisse. As ruas, vielas e casebres se tornaram foco de doenças, pobreza extrema e criminalidade. Monarquias e o onipresente poder da Igreja se tornaram ferramentas de tirania e crueldade autorizada. Não por acaso, a Idade Média recebe a alcunha de Idade das Trevas.
É nesse cenário histórico que surge a Peste Negra. Foi a maior pandemia de todos os tempos, com uma mortalidade estimada entre 75 e 200 milhões de vítimas em três continentes: Europa, Ásia e África. É nesse cenário assustador que acompanhamos duas crianças tentando sobreviver sem seus pais, em meio a ratos, a inquisidores, turbas enlouquecidas e forças inexplicáveis. É nesse cenário que surge um conto da praga, um conto de inocência perdida, um jogo chamado A Plague Tale: Innocence.
Fiat Lux
Fiquei surpreso ao descobrir que o título narrativo é o segundo trabalho autoral da desenvolvedora Asobo Studios, depois do jogo de corrida de mundo aberto FUEL, que não me impressionou em quase nada quinze anos atrás. Entretanto, é possível enxergar um ponto de ligação entre os dois títulos: a qualidade gráfica. FUEL impressionava visualmente em seu lançamento e continua carregando um realismo muito forte nos dias de hoje, principalmente quando comparado com alguns títulos atuais, ao mesmo tempo em que gerava proceduralmente um mapa colossal, tudo isso sem exigir demais da máquina. A Plague Tale: Innocence deslumbra ao olhar e entrega personagens e cenários extremamente vívidos.
Essa punção de vida não está ali apenas como um exibicionismo gráfico, mas como um forte ponto de ligação entre jogador e aquilo que o jogo propõe. O jogador se sente na Idade Média, com toda a sujeira, o horror e a degradação do período, ao mesmo tempo que também é possível contemplar a beleza das paisagens intocadas pelo Homem e onde cada folha de cada árvore ou a luz do entardecer se infiltrando na floresta oferecem um quadro Renascentista digital, com um século de antecedência.
Esse mesmo realismo meio poético, meio grotesco, se manifesta em sua trama, calcada majoritariamente em horrores muito concretos de sua época: a doença, as pilhas de cadáveres nas ruas, o medo no olhar das pessoas, as legiões de ratos vicejando no terreno, o temor da Santa Inquisição. Por toda essa composição mais pé no chão, o elemento místico se torna ainda mais crível quando ele surge. E mesmo esse componente fantástico se insere dentro do seu contexto histórico, bebe dos mistérios da alquimia e mergulha de cabeça na onipresença dos ratos.
Novamente combinando qualidade gráfica com proposta narrativa, a Asobo Studio utiliza da luz como principal arma para seus protagonistas sobreviverem à rataria. Para afastar as trevas, surge a luz. Desta forma, a iluminação exerce um poder apaziguador no coração do jogador. Onde tochas, braseiros e lampiões existem, a segurança está lá, irradiada pelo motor gráfico exuberante. Onde a treva habita, a morte é certa.
Conta Comigo
A Asobo Studio admitiu que se inspirou em obras consagradas, como The Last of Us e Brothers – A Tale of Two Sons para formar o núcleo narrativo de seu próprio trabalho. O tema de família permeia toda a trama do jogo. Aqui, encontramos Amicia, uma jovem nobre de 15 anos que examina suas perspectivas de futuro: seguir seu espírito indomável ou aceitar o papel da mulher nessa sociedade? O destino lhe arranca os dois pais e a coloca na guarda de Hugo, seu irmão de cinco anos de idade, afligido por uma moléstia incurável desde o nascimento. A dinâmica de protetor e protegido se estabelece logo nos primeiros minutos, amplificando a tensão de um jogo que oscila entre furtividade e resolução de enigmas.
Porém, essa mesma família se amplia ao longo do caminho. A Idade Média é uma era de lares partidos, de órfãos, de desvalidos, e outros jovens acabam se juntando a essa jornada, cada um contribuindo com seus conhecimentos e habilidades para que, juntos, consigam triunfar contra os desafios constantes. Infelizmente, não será uma jornada livre de sacrifícios. Felizmente, não será uma jornada livre de companheirismo inesperado ou mesmo risadas.
Ao final de tudo, muitas dinâmicas se invertem. Essa família se expande para dimensões inimagináveis, aqueles que eram frágeis se tornam fortes e a inocência se parte. É um rito de passagem amargo, na mais amarga das épocas.
A trilha sonora de Olivier Deriviere é um deslumbre separado, uma moldura construída com instrumentos medievais que oferece uma camada adicional de imersão. Não dá para afirmar que a Asobo Studios tenha conseguido com A Plague Tale: Innocence se colocar no mesmo patamar de suas fontes de inspiração, mas é um espetáculo visual e narrativo que fica apenas um minúsculo degrau abaixo deles.
Ansioso para saber em que direção a sequência irá conduzir nossos jovens heróis, assim como quais novos horrores estarão espreitando nas sombras.