Com a chegada de System Shock 2 ao Steam, 14 anos após o seu lançamento, termina uma longa e confusa jornada, ainda mais aterradora que os corredores sombrios da espaçonave assombrada. É um pesadelo jurídico que nem mesmo SHODAN poderia conceber...
O primeiro jogo da série foi desenvolvido por Warren Spector para a Looking Glass Studios e distribuída pela Origin em 1994 e, reza a lenda, vendeu menos de 200 mil cópias durante toda sua existência, antes de ser removido das prateleiras. No título, um hacker sem nome tenta sobreviver em uma estação espacial que foi dizimada pela loucura de uma inteligência artificial chamada SHODAN. É a premissa para um jogo de gato e rato entre duas mentes complexas. Pode ter vendido pouco, mas fez história no mundo dos jogos: implantes cibernéticos, armas que poderiam ser aperfeiçoadas, combates estratégicos, tudo isso estava lá quase dez anos antes de Mass Effect ou Fallout 3.
Em meados de 1998, a Looking Glass fez uma proposta indecente para um de seus ex-funcionários, um certo Ken Levine que tinha acabado de fundar a Irrational Games. Ele teria carta branca para desenvolver qualquer projeto usando a engine criada pela Looking Glass para Thief: The Dark Project. Boa parte da equipe da Irrational viera de Thief e tinha experiência com o motor gráfico. A proposta era irrecusável.
O conceito original de Levine e sua trupe seria uma versão de Heart of Darkness no espaço: um comandante militar enlouquecido precisava ser eliminado a bordo de uma espaçonave. Um século depois e Conrad continuava (e continua) influenciando contadores de histórias. System Shock 2 nasceu por acidente, por uma forçada de barra da Electronic Arts.
Quando a toda-poderosa EA assimilou a Origin, levou na barganha metade dos direitos de publicação de System Shock. Warren Spector revelou que conseguiu com que a desenvolvedora Looking Glass Studios retivesse a outra metade. Consequentemente, qualquer tentativa de realizar um novo jogo precisava da autorização de ambas as partes. Segundo Spector, o objetivo da negociata era impedir que a gigante decidisse fazer um novo jogo à revelia, se aproveitando da fama estabelecida pelo primeiro título. Que bola de cristal ele possuía para antever o monstro no qual a Electronic Arts se tornaria?
Ironicamente, o novo jogo da Irrational Games estava lutando para conseguir uma produtora e foi salvo pela EA. A Looking Glass Studios estava em um momento financeiramente delicado e o projeto não era muito comercial à primeira vista. Foi quando a proposta foi levada para a produtora e ela respondeu: "por que não transformamos esta ideia em System Shock 2?". Levine ficou chocado. Não pela cara de pau, mas por ser um grande fã do primeiro jogo, um dos títulos que motivou o desenvolvedor a sair da indústria do cinema e ingressar no mundo dos jogos eletrônicos. Com alguns ajustes aqui e ali, o projeto foi adaptado. Segundo Levine, a jogabilidade foi mantida intacta. Quem conhece a trama do jogo, sabe que o "militar enlouquecido" ainda aparece na trama, mas seu lugar no holofote foi substituído pela ressurreição da icônica SHODAN.
Um ano depois do lançamento, a Looking Glass fechou as portas. E foi aí que o bem-intencionado acordo costurado por Warren Spector se tornou uma faca de dois gumes. Com a falência do estúdio, metade dos direitos da franquia foi parar na mão de uma seguradora. Tudo indicava que era só a Electronic Arts abrir a carteira e conseguiria ter o domínio total da marca. Não aconteceu.
Curiosamente, em 2006, a EA registrou provisoriamente o nome "System Shock 3" no U.S. Patent and Trademark Office. Seria um sinal de algo a caminho? Rumores indicavam que sim, que o estúdio Redwood Shores da EA estava secretamente trabalhando no projeto. Mas, um ano depois, a patente foi abandonada. O mesmo estúdio envolvido nos boatos anunciou o desenvolvimento de um jogo de survival horror que envolvia uma nave espacial abandonada, o uso de registros largados no chão para contar o que aconteceu, monstros horrendos e equipamento que podia ser evoluído. Pouco depois, o Redwood Shores mudou seu nome para Visceral Games e o mundo conheceu Dead Space. Não há nenhuma explicação oficial para as coincidências.
Ken Levine nunca escondeu seu desejo de trabalhar em um terceiro jogo mas afirmava que isto não dependia dele e criticava a inércia da EA. Não obstante, em 2007, ele e a Irrational Games lançaram o elogiado Bioshock, auto-definido como "sucessor espiritual" da série. Diversos elementos característicos estavam presentes: a utopia que deu errado, os habitantes transformados em aberrações, a história recontada através de registros encontrados, o protagonista isolado de tudo e de todos, as habilidades extras que podiam ser desenvolvidas.
Durante mais de uma década, nem o primeiro, nem o segundo jogos podiam ser encontrados para vender em virtude dos problemas legais. System Shock 2 se tornou o jogo mais requisitado no GOG, antigamente conhecido como Good Old Games e especializado em transpor clássicos do passado para máquinas e sistemas modernos. Nada parecia capaz de resolver o impasse.
Ainda não está claro o que aconteceu, mas aparentemente Sansão venceu o Golias e foi a seguradora que conseguiu pegar a outra metade dos direitos que estavam com a EA. E, vindos de lugar nenhum, a Night Dive Studios comprou todos os direitos da franquia da seguradora. A produtora/desenvolvedora/sei lá não tem um único título criado por ela mesma, mas foi capaz de desfazer um equívoco que já durava tempo demais.
Com a benção da lei, SHODAN está solta no GOG, no Gamersgate e no Steam. Corram.